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A tessitura dos discursos na construção diagnóstica da fibrose cística: uma perspectiva sobre acesso e barreiras

Resumo

As complexidades referidas na busca pela “exatidão” no diagnóstico da fibrose cística (FC) apontam para reflexões em torno de “o que é preciso” na atual conjuntura da “medicina de precisão”. Analisamos os discursos de 19 atores sociais pertencentes à comunidade de especialistas na fibrose cística, explorando as acepções semânticas do vocábulo “precisão” e as barreiras ao diagnóstico e às inovações na terapêutica. Adotamos a análise crítica do discurso de Norman Fairclough a fim de alcançar as construções discursivas em torno da integralidade do cuidado, da garantia e oferta equitativa dos básicos sociais. O acesso foi identificado como categoria êmica quando nas arenas sociais de disputa estão as necessidades de saúde e o direito à vida.

Palavras-chave:
Fibrose cística; Medicina de precisão; Necessidades de saúde

Abstract

The complexities referred to in the search for “accuracy” in the diagnosis of cystic fibrosis (CF) point to reflections around “what is needed” in the current situation of “precision medicine”. We analyzed the discourses of 19 social actors belonging to the community of specialists in cystic fibrosis, exploring the semantic meanings of the word “precision”, and the barriers to diagnosis and innovations in therapeutics. We adopted the critical discourse analysis (CDA) of Norman Fairclough in order to achieve the discursive constructions around the integrality of care, the guarantee and equitable supply of basic social needs. Access was identified as an emic category when in the social arenas of dispute are health needs and the right to life.

Key words:
Cystic fibrosis; Precision medicine; Health needs

Introdução

O vocábulo precisão, presente em medicina de precisão, instiga um olhar analítico diante das (im)precisões que a fibrose cística (FC) evoca como condição de saúde rara, crônica e complexa. Este artigo explora os sentidos entre “o que é preciso” no processo de construção do diagnóstico e o “que se faz necessário” para os sujeitos com essa condição de saúde. Entre exatidão/precisão e necessidades de saúde, situamos as inovações na terapêutica da fibrose cística com os medicamentos moduladores de CFTR (cystic fibrosis transmembrane regulator). Esses moduladores, segundo Amaral e Rego11 Amaral MB, Rego S. Rare diseases on the agenda for innovation in health: progress and challenges with cystic fibrosis. Cad Saude Publica 2021; 36(12):e00115720., são significativos para obtenção de qualidade de vida e fortalecimento da esperança.

A FC é uma doença genética rara, autossômica recessiva ligada às mutações no gene CFTR, progressiva e que requer cuidados contínuos. Mutações localizadas no cromossomo 7q31.2 alteram a codificação do gene CFTR, o que leva ao desequilíbrio na concentração de cloro e sódio no interior das células responsáveis pelas secreções do corpo. As secreções, mais espessas, ocasionam alterações em diferentes sistemas do corpo humano, sobretudo no funcionamento de pulmões, pâncreas, fígado, intestino e sistema reprodutivo22 Athanazio RA, Silva Filho LVRF, Vergara AA, et al. Brazilian guidelines for the diagnosis and treatment of cystic fibrosis. J Bras Pneumol 2017; 43(3):219-245..

Com essa descrição, a FC nos (re)envia sua complexidade genética no campo da medicina de precisão e da esperança por cuidados que promovam a vida com qualidade na cronicidade. A palavra precisão transita na sinonímia da exatidão, da perfeição, do rigor, do apuro e da necessidade, estabelecendo um diálogo entre a exatidão” por uma definição, e “o que é preciso” no universo das necessidades. Sua acepção como verbo - “o que é preciso” - afina-se às necessidades de saúde; e como adjetivo - na sinonímia da exatidão -, remete ao lugar do diagnóstico e suas implicações na terapêutica.

Tais acepções adentram o cenário da biomedicina contemporânea e se atualizam nos discursos dos atores sociais, aqui compreendidos como um universo onde se encontram: profissionais de saúde, pesquisadores, associações de pacientes, pacientes especialistas, profissionais da indústria farmacêutica, legisladores e tomadores de decisão.

Esses atores sociais, aqui entendidos como uma comunidade de especialistas na FC, apreendem a realidade social dando-lhe sentidos e significados. Isso a partir dos lugares que ocupam nas relações de classe, raça, geração, valores culturais e possiblidades de acesso à satisfação das necessidades de saúde nas arenas sociais. É nesse lugar socialmente construído que a dialética de influências, alianças, reconhecimentos e disputas de poder dinamizam os discursos e os ressignificam33 Souza C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias 2006; 16:20-45.,44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016..

Nas arenas sociais são traduzidas demandas a serem respondidas por um sistema político, onde a sociedade e as instituições negociam as decisões. Esse modelo analítico nos coloca diante de um campo fértil para as políticas públicas, um lócus para as negociações de poder e interesses presentes na policy community (comunidade de especialistas)33 Souza C. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias 2006; 16:20-45..

Na comunidade de especialistas circulam os iguais e os informados55 Goffman E. Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC; 1981. e podem ser tecidos vínculos e relações, influências, valores e identidades em disputa e negociação. Um processo complexo de elaboração das necessidades e criação de demandas para a agenda pública dos tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas.

Compreender o discurso como prática dos atores sociais inscrita em arenas sociais implica considerar a combinação existente entre as perspectivas estruturais e as ações. Isso porque a prática social é “por um lado, uma maneira relativamente permanente de agir na sociedade, determinada por sua posição dentro da rede de práticas estruturadas; e, por outro, um domínio de ação social e interação que reproduz estruturas, podendo transformá-las”66 Fairclough N. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D'Água 2012; 25(2):307-329. (p. 308). Recorrendo ao campo da integralidade na atenção à saúde das pessoas com fibrose cística, a assumimos como uma experiência cotidiana que se inscreve no corpo e na vida como uma condição de saúde rara, crônica e complexa.

Sustenta o presente artigo o acervo de uma pesquisa empreendida por Marins77 Marins KAC. Entre o raro e o (im)preciso na construção de uma linha de cuidados na fibrose cística [dissertação]. Rio de Janeiro: IFF/Fiocruz; 2021. em que se articula um diálogo entre necessidades e demandas por saúde, tendo por cenário a biomedicina contemporânea em seus limites e potencialidades. Visamos analisar - pela definição/precisão x indefinição/imprecisão diagnóstica na fibrose cística - o campo discursivo na busca pelo tratamento exato cuja expressão máxima está “o que é preciso”.

Método

A experiência da fibrose cística está longe de ser homogênea entre aqueles que compõem a comunidade de especialistas, no que toca à apropriação, significados da atuação e identidade com as lutas, as estratégias de atuação na e sobre a realidade. Desse modo, a pesquisa que sustenta este artigo se localiza nos pressupostos da análise crítica do discurso (ACD) pela perspectiva de Norman Fairclough44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016.,66 Fairclough N. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D'Água 2012; 25(2):307-329..

A perspectiva teórica-metodológica presente na ACD assume a linguagem como uma prática social. E, no exercício dialético das relações sociais, as condições de produção do discurso representam a posição sócio-histórica e cultural dos atores sociais, aqui entendidos como a comunidade de especialistas na fibrose cística. A linguagem é apropriada como uma forma de prática social, tornando o discurso um modo de ação, a maneira como as pessoas agem sobre o mundo, sobre os demais indivíduos e nas representações77 Marins KAC. Entre o raro e o (im)preciso na construção de uma linha de cuidados na fibrose cística [dissertação]. Rio de Janeiro: IFF/Fiocruz; 2021..

Para Fairclough44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016. o discurso tem a capacidade de moldar-se e restringir-se à estrutura social. Essa estrutura social é apreendida de forma ampla e nas localizações de classe, nas e pelas relações sociais e institucionais, normativas, convenções e classificações, as quais são de natureza discursiva ou não. Os eventos discursivos, numa dada estrutura social, atribuem variabilidade segundo o domínio social e institucional que são gerados. Ao passo que também são socialmente constitutivos pelas próprias dimensões da estrutura social que os moldam e os restringem. Logo, o discurso é uma prática de representação e um processo de constituição e construção de significado do mundo44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016.,66 Fairclough N. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D'Água 2012; 25(2):307-329..

Assumimos a existência de uma relação dialética entre discurso e estrutura social, pois a constituição discursiva da sociedade decorre de uma prática social alicerçada nas estruturas sociais objetivadas e orienta-se de modo contraditório, parcial e flexível. Por outro lado, a prática social é construída por uma diversidade de elementos semióticos: atividades produtivas, meios de produção, relações sociais, identidades sociais, valores culturais e consciência. E o discurso realiza-se implicado a todos esses elementos44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016.,66 Fairclough N. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D'Água 2012; 25(2):307-329..

O discurso se apresenta como um modo de prática política e ideológica, à medida que pode atuar na manutenção ou transformação das relações de poder, bem como constituir, naturalizar, manter ou transformar os significados atribuídos, a depender das posições sociais diversas nas relações de poder. Transformando em arenas de disputas o modo como se articulam as relações de poder, as ideologias e as convenções nas práticas discursivas44 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: UNB; 2016.,88 Melo IF. Análise crítica do discurso: modelo de análise linguística e intervenção social. Rev Estud Linguísticos 2011; 40(3):1335-1346..

Os atores sociais, como sujeitos sócio-históricos, agem e não se reduzem a um sujeito “assujeitado”, mas se constituem na ambivalência desses dois estados. Por intermédio dessa dinâmica, “o discurso determina por constituir identidades, modelar relações sociais e as formas de conceber/ler o mundo”99 Silva ER, Gonçalves CA. Possibilidades de incorporação da análise crítica do discurso de Norman Fairclough no estudo das organizações. Cad EBAPEBR 2017;15(1):1-20. (p. 8).

Nesses pressupostos teóricos acionamos uma rede indicativa de universos familiares - na qual cada entrevistado indicava outros membros da comunidade de especialistas para constituir-se em participante da pesquisa. Essa rede de universos baseada na familiaridade não é aleatória, não é uma bola de neve que corre de forma supostamente natural. Assume a familiaridade como base de indicação1010 Vaitsman J. Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Rocco; 1994.,1111 Velho G. Observando o familiar. In: Velho G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar; 1981. p. 123-132., referência e conhecimento, logo, reafirma uma intencionalidade na indicação.

Pela dinâmica empregada, chegou-se ao quantitativo de 42 indicações, sendo 11 pessoas indicadas mais de uma vez. Foram contatadas 31 pessoas - uma presencial e 30 através do aplicativo WhatsApp com mensagens de texto convidando a participação na pesquisa.

Do total das pessoas contatadas, 20 retornaram, possibilitando a realização de 19 entrevistas individuais no período de janeiro-abril de 2021. Uma entrevista não foi feita, pois a disponibilidade do participante ocorreu após a etapa das entrevistas. As entrevistas abertas ocorreram no tempo médio de 1h30 e foram guiadas por um roteiro composto de: identificação e três afirmativas disparadoras que relacionavam - a aproximação com a FC, a dimensão do diagnóstico e as necessidades de saúde na atual conjuntura da medicina de precisão.

As entrevistas ocorreram nas modalidades presencial, com gravação de áudio (uma entrevista), e remota (18 entrevistas) através de plataformas digitais online (Zoom: 11 entrevistas; Meet: 7 entrevistas), o que possibilitou acessar participantes cuja distância territorial e/ou fusos horários não favoreceriam a dinâmica presencial.

Todo o acervo de discursos produzido das entrevistas, após transcrito, foi submetido a uma leitura exaustiva, dialogada com o desenho teórico-metodológico da ACD, feita separadamente por cada uma das autoras deste estudo. Posteriormente, foram articulados os aspectos descritivo, interpretativo e explicativo presentes nos discursos dos atores sociais.

Todos(as) os(as) participantes atestaram a participação por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com nomes anonimizados, identificados por letras maiúsculas seguidas de números (algarismo indo-arábicos), a saber: seis profissionais de saúde (S); três membros de associações de pacientes com FC (A); cinco profissionais vinculados a laboratório industrial farmacêutico (I); um pesquisador (P). E atores sociais que consideramos por identidade híbridas: uma pessoa com FC e pesquisador (PFC); uma pessoa com FC e membro de associação (AFC); um familiar de pessoa com FC e pesquisador (PF); um familiar de pessoa com FC, membro de associação e pesquisador (APF).

Destaca-se que, pela localização geográfica dos participantes, a pesquisa alcançou uma distribuição territorial de estados/regiões do país para além do limite geográfico brasileiro. Isto é, contou com participantes do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul e de brasileiros residentes nos Estados Unidos e em Portugal.

A pesquisa77 Marins KAC. Entre o raro e o (im)preciso na construção de uma linha de cuidados na fibrose cística [dissertação]. Rio de Janeiro: IFF/Fiocruz; 2021. que gerou este artigo foi aprovada sob nº CAAE: 40374320.0.0000.526 e Parecer nº 4.472.657.

Resultados e discussão

Ao partir da expressão “o que é preciso”, refletimos sobre as necessidades como produto sócio-histórico presente nos discursos dos atores sociais, em ação nas arenas sociais. Nestas ocorrem disputas com pautas reivindicatórias diversas, que muitas vezes acionam o argumento do reconhecimento de direitos.

Nos discursos, o diagnóstico e o medicamento foram interpretados analiticamente como estações na linha de cuidado da fibrose cística, pontos de atenção numa perspectiva de integralidade. A possibilidade do diagnóstico “preciso” remete a uma construção da busca por cuidados, concretizada pelo nomear o que se “tem” expresso pelos sintomas. Nessa construção, o medicamento assume importância em termos de ganho de qualidade e anos de vida - Isso é uma questão que eu entendo perfeitamente a necessidade da gente ter uma medicação eficiente e consiga dar, como eu vou dizer para você? Um horizonte para esse paciente (S-6).

No modo como os atores socais significam as representações, inseridas na rede de práticas sociais e pela relação com as demais práticas particulares, o diagnóstico é tomado como identidade, mas também como um campo onde imprecisões se colocam frente às necessidades da vida. No diagnóstico, a doença transcende as manifestações clínicas, remetendo cada vez mais a outras dimensões da vida. Portanto, apreendemos o diagnóstico não aprisionado na doença em si, mas na esfera da condição de saúde e em seus (re)arranjos nas práticas cotidianas1212 Rosenberg CE. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience & Contested boundaries - psychiatry, disease, and diagnosis. Milbank Q 2002; 80(2):237-260..

Ou, ainda, o diagnóstico incorpora as marcas, estigmas e sintomas para iluminar pontos comuns e singularidades entre aqueles que o vivem em seus corpos1313 Jutel A. Beyond the sociology of diagnosis. Br J Sociol 2015; 9(1):841-852.. Também se coloca como um mecanismo de análise de um sistema mais amplo na sociedade, sobre o qual estão as práticas dos atores sociais em sua relação com a ciência, a tecnologia e os direitos sociais.

[...] diagnóstico ainda é… Eu acho que é um ponto chave... (I-3).

Assim, se pudesse colocar numa escala de importância, o diagnóstico ele é o principal, sem sombra de dúvidas. Tanto que todas as políticas, as diretrizes, são baseadas no paciente com fibrose cística, não no paciente sem fibrose cística. Então o diagnóstico é de total importância, de 0 a 10, é 10 (I-2).

Nos discursos, o diagnóstico ocupa lugar de elevada importância. Constrói-se nas expressões negociadas das falas cotidianas e dos argumentos científicos dos atores sociais, tais como “ponto chave” (I-3) e/ou ápice numa escala gradativa. Além de remeter quase que instantemente aos meios necessários que se articulam à sua (in)definição.

[...] muitas mães não tinham o diagnóstico de qual era a doença fechado. Então ela não consegue fazer nada, ela não consegue judicializar, ela não consegue apoio do Estado. Ela vive para cuidar do filho ou da filha sem amparo legal, sem amparo social, nada (APF).

[...] um laudo típico, que vem duas variantes patogênicas, é fácil, mas a parte dos laudos que ficam meio em cima do muro, as variantes em significado incerto, se está em cis, se está em trans, uma variante só detectada, aí a coisa começa a complicar (S-3).

O uso da metáfora “em cima do muro” (S-3) e da antítese “fechado” (APF) para marcar as indefinições relacionadas ao diagnóstico, e as consequências na vida quando da sua ausência pelo uso do advérbio de negação “não”, da preposição “sem” e da partícula “nada” (como objeto direto ou como advérbio de intensidade) - ao evocar o aspecto legislativo e interventivo do Estado nas garantias a sua efetividade e aos demais “pontos” de atenção que ter um diagnóstico possa imprimir na vida.

A centralidade do diagnóstico é perceptível na própria construção textual dos discursos, no uso de expressões como “diagnóstico ainda é”. No uso do tempo verbal no presente “é”, “têm” e “consegue”; sequências verbais no passado, demonstrando a processualidade dos acontecimentos até sua definição e em enumerações para denotar graus de importância.

A presença do diagnóstico conformando identidade e pertencimento, discursivamente se entrelaça com outros processos sociais: orientadores das ações, busca por acesso (tornada peregrinação), participação no entendimento sobre o mercado das tecnologias diagnósticas e/ou nas investigações e pesquisas, bem como nas batalhas para concretizar direitos que podem levar à judicialização.

Ainda sobre o diagnóstico, cabe-nos acionar uma análise goffmaniana, em que nos discursos dos atores sociais não está em jogo somente o espaço físico, mas as situações sociais, interações, representações reflexivas e recontextualizadas1414 Goffman E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes; 2014.. Assim, o diagnóstico tomado como elemento semiótico presentifica-se nas representações, articula o geral e o particular, não limitado ao binômio médico-paciente, pois agem nele (e sobre ele) crenças, valores e disputas1212 Rosenberg CE. The tyranny of diagnosis: specific entities and individual experience & Contested boundaries - psychiatry, disease, and diagnosis. Milbank Q 2002; 80(2):237-260..

O diagnóstico se coloca como um mediador - na interação necessária de uma codificação da doença -, para isso se vale na contemporaneidade de métodos e de tecnologias cada vez mais precisos. E ainda se constitui em estruturante da prática social, pois remete às necessidades e demandas por saúde. O diagnóstico torna-se “uma lente eficaz através da qual aspectos sociais da saúde podem ser vistos”1313 Jutel A. Beyond the sociology of diagnosis. Br J Sociol 2015; 9(1):841-852. (p. 845).

Eu penso assim: a fibrose cística é uma doença que não é de um órgão específico, não é? Ela afeta o corpo como um todo [...] O diagnóstico é imprescindível, mas depois dele vem um mundo à parte, só quem trabalha com isso ou vive com isso é que sabe (A-2).

O diagnóstico é só o primeiro passo, e é o divisor de águas, porque uma vez que você sabe o que você tem, você pode tentar se adaptar - eu não diria, assim, para não ter sintomas, mas para tentar minimizar (PF).

Como condição de saúde complexa, a fibrose cística transcende o aspecto fisiopatológico que a define. O diagnóstico está na colocação metafórica de A-2 ao interrogar: “Um caminho, não é?”; ou na metonímia de PF: “primeiro passo”. E nesse caminho, que se inicia para os atores sociais na imprescindibilidade do diagnóstico, como a definição do que se acomete o corpo, também se constrói discursivamente como “divisor de águas” (PF) ou no que “afeta o corpo como um todo” (A-2), ao trazer mudanças que se colocam e que serão colocadas no percurso da vida e em necessidades.

As figuras de linguagem operam como um ambiente para a construção do discurso, imagens que facilitam uma interlocução com a audiência, construindo e sustentando discursos em um ambiente político. Tal como na hipérbole do “mundo que se abre, uma janela imensa, desde o emocional ao aparato financeiro” (A-2), ou na metonímia em destaque na fala de S-1, “Poucas famílias conseguem encarar essa doença de forma positiva. No geral, todos eles dizem: ‘vocês tiraram o nosso chão com esse diagnóstico’”.

É na intensidade da experiência irrestrita ao nome em si e ao que se apresenta em sintomas que se traduzem as práticas sociais. Apresentando-se nas formações discursivas (mesmo nas mais biomédicas) como limites ou possibilidades de acesso a uma integralidade do cuidado. Há aqui a força da experiência disruptiva do diagnóstico anunciado, desconhecido e raro.

Nesse sentido, iluminam-se demandas e necessidades de saúde presentes na semiose das (im)precisões do diagnóstico e como ele se constrói em sentido e significado. Constitui-se e é constituído nos discursos dos atores sociais frente aos aspectos socioeconômicos e culturais; da linguagem e do conhecimento informado; do diagnóstico e do tratamento; do tempo gasto com a rotina diária de tratamento; da construção da autonomia e identidade; do planejamento da vida; da transição para os cuidados adultos; da construção de direitos sexuais, reprodutivos e da vida produtiva que se apresenta em possibilidades e potencialidades.

[...] o diagnóstico já é uma primeira barreira [...] Alguns até hoje têm dificuldade de oferecer a triagem neonatal na fase III, universalizada em 2011, então o diagnóstico é ainda uma barreira e por isso a gente ainda tem muitos diagnósticos tardios no Brasil, o acesso aos exames confirmatórios também são difíceis, né? Poucos centros fazem o teste do suor ou, menos ainda, centros que fazem testagem genética. Então isso ainda é uma barreira (A-1).

Exames, a gente tem a questão do teste do pezinho que parou por um tempo porque faltou o marcador. Ficamos uns seis meses com um gap grande com os pacientes (A-3).

Adotando os vocábulos “barreiras”, “limites” e “gaps” nas construções textuais discursivas, por vezes apresentados juntamente com numerais ordinais ou cardinais, os atores sociais caracterizam a oferta da atenção em saúde na fibrose cística e/ou aquilo que pode ser identificado como necessidades de saúde a serem observadas.

No entanto, na reflexão em torno da regência dos vocábulos apresentados no parágrafo anterior, falamos de “barreira a/ao”, “limites de”, “gaps de”. O que demanda um complemento capaz de atribuir maior sentido, ou seja, ao olhar dialeticamente as estruturas discursivas que os atores sociais se valem em seus discursos, questionamos: qual seria o complemento nominal que os tornariam mais inteligíveis?

Concluímos que o sentido dos vocábulos nos reenvia à palavra acesso. O acesso, nos discursos dos atores sociais, é reconhecido como uma necessidade de saúde, que impacta na atenção e qualidade da oferta dos cuidados - eu acho que acesso é um outro gap que precisa ser visto com muito cuidado, muito cuidado (I-1).

O acesso perpassa as construções textuais e as formações discursivas do diagnóstico, do tratamento, da existência e estruturação dos centros de referência, da informação, e se coloca nas ponderações atuais em torno dos medicamentos moduladores de CFTR. Desse modo, bem mais que um conceito na perspectiva do cuidado integral na fibrose cística, o acesso comparece como categoria êmica nos discursos, à medida que atua na representação das práticas sociais, numa atenção maior (do e) para ele como valor.

Enquanto produção semântica, o acesso pode se aproximar da acessibilidade, bem como da existência de modelos teóricos que transitam entre ambos (acesso e acessibilidade), remetendo ao cuidado em saúde. Comparece ainda na variabilidade que decorre da relação entre os indivíduos e a oferta dos serviços, objetivos/resultados pelos sistemas de saúde na relação que se estabelece com os elementos que o compõe1515 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198..

De forma geral, o conceito de acesso compreende a entrada no sistema de saúde em si e o desempenho associado à oferta dos serviços de saúde. Há uma tendência atual de o empregar no âmbito dos resultados dos cuidados recebidos, destacando modelos explicativos distintos em torno do “acesso e uso de serviços de saúde; acesso e continuidade do cuidado; e acesso de efetividade dos cuidados prestados”1515 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198. (p. 197).

Já por acessibilidade, o emprego atribuído por Donabedian (1973) se define na qualidade de ser acessível como um dos aspectos da oferta à produção de serviços e respostas às necessidades de saúde. Ou seja, as características que facilitam ou limitam o uso por determinada população são relevantes na dimensão da equidade nos sistemas de saúde1515 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198..

Destaca-se ainda na revisão conceitual de acesso em saúde a possibilidade de tê-lo no uso dos serviços do setor, juntamente com uma multiplicidade de outros fatores (individuais, contextuais e de qualidade e efetividade do cuidado). E, em linhas gerais, define como determinantes a utilização dos serviços de saúde cujos fatores relacionados são: a) necessidade de saúde; b) aspectos demográficos, geográficos, culturais, psíquicos e socioeconômicas dos usuários; c) prestadores de serviços; d) características dos recursos e disponibilidade da oferta dos serviços; e) aspectos relativo à política (o tipo e financiamento dos sistemas de saúde, a quantidade, distribuição e regulamentação de recursos, dos profissionais e do próprio sistema)1515 Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(Supl. 2):S190-S198..

Dada a complexidade que envolve o conceito de acesso à saúde e da possibilidade em ser apreendido como indicadores de processo e resultados, descrevem-se quatro dimensões: disponibilidade, aceitabilidade, capacidade de pagamento e informação. Essas dimensões do acesso estabelecem relação com aspectos menos tangíveis, a exemplo da cultura, da educação e da localização socioeconômica. Além disso, a melhoria no acesso à saúde perpassa ações intersetoriais com as demais políticas sociais e econômicas1616 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica 2012; 31(3):260-268..

A partir desse diálogo sobre acesso, discutimos as formações discursivas dos atores sociais na fibrose cística, trazendo à cena algumas inferências. Primeiro, perceber como sentidos constituem e são constituídos na equivalência do uso apropriado dos serviços de saúde e em que medida correspondem à efetiva resposta às necessidades de saúde.

[...] fibrose cística é uma doença complexa. Basicamente multidisciplinar. Então existem questões não só médicas, mas psicológicas, sociais, em que muitas vezes as crianças, desde pequenas, são obrigadas a usar medicações continuamente, muitas vezes se internam, o que gera muitas vezes questões como: perder aula, perder ano. Então eu diria que envolve não só a doença médica em si, mas o entorno da criança se torna mais difícil, e como isso repercute na família? É uma visão que a gente tem todos os dias (S-1).

A complexidade que marca a conceituação do acesso à saúde também é parte constituinte da fibrose cística. Falamos dessa complexidade conceitual que permeia (e é permeada de) sentidos e significações (em termos de definição) e ao que marca no cotidiano. Por exemplo, se pensamos na dimensão da aceitabilidade1616 Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica 2012; 31(3):260-268. em termos de informação e vínculo, vemos o quão de forma central e interveniente configura uma “peregrinação terapêutica” nas doenças raras de uma maneira geral e na fibrose cística. Essa dimensão faz interface com os estigmas, que afastam tanto as pessoas comuns como profissionais não especialistas, educadores e os diversos círculos de sociabilidade.

Tal complexidade está no fato de não ser “só médica”, ou psicológica ou social ou familiar, mas na integralidade da vida, e presente na prática social de quem vive, milita, trabalha, faz ciência e produz tecnologia. Portanto, em termos da atenção ao acesso integral, constrói-se na disponibilidade, na aceitabilidade, no financiamento e na informação.

[...] ela viu que o teste do pezinho não conseguia ser feito por causa da falta de insumo, por causa da falta de profissionais, então tinha teste do pezinho demorando um ano para sair, e teste do pezinho tem que sair em duas semanas no máximo. E está dentro do sistema SUS, então o diagnóstico ainda é um desafio (APF).

Transpor os limites do diagnóstico significa, primeiramente, acessar o necessário ao que o define. As formações discursivas dos atores sociais elencam construções textuais que giram em torno das ausências, disparidades, interrupções de exames e insumos que assegurem o próprio diagnóstico, tais como a triagem neonatal (“teste do pezinho” - APF) e o teste do suor no SUS. Paralelamente a realidades desiguais no mesmo território nacional, exigindo esforços para serem melhor equacionadas.

[...] a gente precisaria de alguma medida política ou de alguma movimentação junto ao Ministério da Saúde para homogeneizar isso em todo território nacional. Ainda é um problema. Outra dificuldade que eu vejo é a confirmação do diagnóstico, que é o teste do suor, em alguns estados você vê que isso se dá de forma muito tranquila, mas em outros tem ainda uma dificuldade gigantesca para fazer o teste do suor (I-3).

O Programa Nacional de Triagem Neonatal, universalizado em 2011, tem na fase III também a triagem para a fibrose cística. E o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da fibrose cística - PCDT (última revisão em 2021) estabelece que dois resultados alterados para a dosagem do IRT (tripsina imunorreativa) no intervalo de três a quatro semanas de vida do recém-nascido indicam a necessidade de investigação por meio da dosagem de eletrólitos no suor - teste do suor. E, por conseguinte, o acompanhamento no centro de referência especializado.

Sabemos que o fato de existir nas portarias e protocolos não caracteriza igual acesso em termos de disponibilidade no SUS. Mas abre a possibilidade de colocar em disputa nas agendas, numa necessária articulação que permita “homogeneizar isso em todo o território nacional” (I-3). Isto é, na sinonímia do verbo “homogeneizar”, como algo que se apropria em semelhança de estrutura, função, distribuição, numa garantia de unidade e efetividade em todo o território nacional.

Os discursos dos atores socias em torno do acesso ao diagnóstico e a representação dos sentidos se sustentam em dois principais pontos: a) trajetória acidentada por diversos serviços de saúde, realizações de exames e consultas com especialistas na busca pela definição; b) abrangência, qualidade, quantidade e fluxos dos serviços de saúde prestados que reportam à existência (ou não) de insumos, equipamentos e diversos meios apropriados para o diagnóstico em si.

Contudo, observamos que seja pela trajetória acidentada em busca da definição diagnóstica, seja pelas limitações da cobertura efetiva dos serviços de saúde, o diagnóstico se constrói discursivamente por “processo” (PFC) ou por “conjunto de ações” (PFC) que têm na expressão adjetivada “muito difícil” (A-3) a sua principal qualificação. E no objeto direto da oração “perde um tempo grande” (A-3), sua personificação.

Tão logo, os meios de enfretamento se mostram no campo semântico “parceria” (A-3) e “na ajuda” (A-3), aqui entendidos como a (re)união, seja dos atores sociais, seja das estratégias mobilizadas na busca por uma atenção em saúde qualificada.

Esse “processo” ou “conjuntos de ações” por natureza difíceis também podem se materializar em diagnósticos tardios de fibrose cística, a despeito da já presença de sintomas consideráveis, tornando possível uma (im)previsibilidade não desejada do que há de vir - então a gente deve ter uma leva de pacientes que vai chegar em breve com os sintomas respiratórios, gástricos, vai vir diagnóstico ou não (A-3).

O Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC)1717 Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística. Registro Brasileiro de Fibrose Cística 2018 [Internet]. 2021. [acessado 2023 ago 3]. Disponível em: http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2018.pdf
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aponta que a mediana de idade para o diagnóstico nos últimos seis anos manteve-se abaixo dos seis meses de idade. Mas quanto às condições para o diagnóstico, a disponibilidade de acesso a uma cobertura efetiva da triagem neonatal encontra-se abaixo das manifestações respiratórias persistentes e do déficit no crescimento/desnutrição, respectivamente.

No entanto, em nosso país de dimensões continentais, é notória a presença dos “brasis” (em alusão a obra do antropólogo Darcy Ribeiro), dada sua diversidade sociocultural e econômica - ditando assim inferências no acesso à saúde e à satisfação de necessidades. Na representação da ordem do discurso na fibrose cística, temos o “sem” e o “nada” (APF) convivendo no mesmo país com o “bem” e “tem” (S-6), materializando as dimensões do acesso ao diagnóstico.

O acesso ao diagnóstico mostra-se no paradoxo da formação discursiva e na prática social dos atores sociais. Visto apresentar-se no contexto sócio territorial brasileiro entre as experiências coletivizadas do “muito difícil”, “erroneamente”, “não”, “sem” “demora muito”, em paralelo ao “bem encaminhado”, “ter”, “rápido e eficaz”, “precoce”, “correto”. Ou seja, nas formações discursivas está a dimensão paradoxal que adjetiva a (im)precisão do acesso à saúde.

Por outro lado, a afirmação É algo de ouro e passa mais rápido que o nosso tempo, então a gente não pode esperar o nosso tempo, a gente tem que andar no tempo dos nossos pacientes (S-6) - tem por núcleo semântico central o “tempo”, representado por indefinido, precioso e célere, perceptível de forma diferenciada pelos atores sociais cuja marcha precisa ser ditada pela pessoa com fibrose cística.

“Tempo” (S-6) traz em si representações de sentido, consideradas transversais em todo pensamento de busca por cuidado. Pois esse tempo se expressa tanto na objetividade do diagnóstico e/ou no acesso e duração relativa do tratamento quanto no momento em que se vive e acontece a vida, nas oportunidades que se coloca nas (im)precisões como parte da vida.

A representação do “tempo” no tratamento comparece como elemento semiótico do discurso. Está presente nas dimensões do acesso, seja no local de referência do tratamento, seja no medicamento, e neste também se define em tempo dedicado ao uso das medicações e terapias. Além disso, dimensiona-se em meio ao acesso à satisfação das necessidades básicas de subsistência, aos aspectos que compõem os centros de referência quanto a localização, estruturas físicas e composição das equipes multidisciplinares.

A gente sabe que a expectativa de vida desses pacientes vem aumentando conforme os anos vão passando, com o desenvolvimento de terapias, com o acesso às medicações, seja, por exemplo, uma tobramicina. Então você tem uma melhora de vida na qualidade desse paciente e isso tem aumentado a expectativa de vida. Consequentemente, esses pacientes vivendo mais. Eles vão ter, por exemplo, a migração do tratamento num centro pediátrico para um centro de adulto, e consequentemente não é só o diagnóstico (I-4).

As formações discursivas em torno do tratamento podem apresentar-se em termos do produto esperado, tais como as construções textuais: “aumento da expectativa de vida” (I-4), “melhora da qualidade de vida” (I-4), “acesso a medicações” (I-4) e na maior especificação do cuidado quando da transição para a idade adulta. Contudo, o tratamento não está discursivamente representado numa linearidade subsequente ao diagnóstico, mas remete às disputas nas arenas sociais e na própria experiência da condição de saúde.

Esse tratamento, o PCDT, hoje só inclui as enzimas digestivas, alfadornase e a tobramicina, que é um dos antibióticos usados na fibrose cística, e a gente tem estados que só dispõem disso e estados que, por medidas judiciais ou por lei estadual, ou protocolos estaduais, conseguiram incluir mais opções terapêuticas aí (A-1).

A disponibilidade do acesso ao tratamento afirma-se discursivamente na existência do PCDT quanto às medicações já incorporadas pelo SUS (tal como o recente modulador de CFTR, princípio ativo ivacaftor), mas também nos embates para a garantia de fornecimento e acesso equânime, com as judicializações recorrentes, acordos, pactuações nas instâncias federadas, conforme a dinâmica de correlação de forças possíveis a cada tempo.

Podemos apresentar o acesso ao tratamento, em meio a essa disputa entre o que é preciso versus o ofertado, pois “só inclui” (A-1) e “só dispõem” (A-1) pelo viés financeiro de custeio pelo sistema de saúde. Porém, a busca pelo “incluir mais” (A-1) implica considerar os custos indiretos do cuidado para as famílias.

Desse modo, nos discursos o acesso ao básico ainda produz realidades marcadas pelo “não tem”, a “falta”, o “deserto” (A-3) na correspondência que se estabelece com “o que é preciso”, embora já previsto. E o uso de instrumentos judiciais, “liminares” (A-3), “ação civil pública”, (A-2) “bloqueio de recurso” (A-3), como meio mais próximo para fazer transitar no campo semântico do ter, o que por dever - “obrigação” (A-2) equacionaria, no cenário brasileiro, o acesso ao diagnóstico e ao cuidado integral para a fibrose cística.

Conclusão

A fibrose cística produz impactos socioeconômicos, culturais, subjetivos e identitários em torno da experiência cotidiana e compartilhada do cuidado. O que se faz comumente presente, desde as trajetórias de busca por uma definição diagnóstica até o próprio ato de cuidar, é essa responsabilidade ser delegada à mulher como exercício implícito da maternidade.

Também há impactos no processo de socialização das crianças e dos adolescentes com seus pares, muitas vezes relacionados às diferenciações presentes nas impressões físicas de seus corpos e dos sintomas, tais como a tosse constante e as secreções, internações que interrompem rotinas escolares, uso de máscaras para precaução respiratória, entre outros.

Portanto, a fibrose cística, apreendida com uma condição de saúde rara, apresenta uma perspectiva de cuidado que incorpora os determinantes sociais do adoecer, os quais incidem sobre a vida, a esfera dos direitos, da garantia ao cuidado, as iniquidades sociais, a organização do sistema de saúde, ao qual inscreve demandas e necessidades. Recoloca, assim, a saúde no centro e interconecta tantas outras necessidades, em que grupos, famílias e associações estão mobilizados na busca por qualidade de vida e garantia de direitos.

Logo, nos discursos dos atores sociais que compõem a comunidade de especialistas, a centralidade do diagnóstico, alusivamente, ocupa o lugar do passaporte para o acesso à definição da condição de saúde e ao tratamento. Urge interpretar o diagnóstico como parte da construção identitária e coletiva, fundamental na busca por direitos e a consolidação dos meios para acessá-los.

No entanto, ao ter o diagnóstico, inicia-se uma jornada que tensiona as arenas sociais. Nas disputas pelo direito de ter o diagnóstico, faz-se preciso/necessário a oferta de serviços como triagem neonatal, teste do suor e o exame genético, disponíveis no SUS em todo o território nacional. Reafirma-se a necessidade de assegurar a existência de meios para satisfação das necessidades de saúde advindas de uma condição de saúde rara, crônica e complexa.

Desse modo, nas formações discursivas, a integralidade do cuidado descreve no preciso o que é necessário para oferta em equidade do básico à garantia do diagnóstico e ao tratamento. Ao passo que o acesso, apreendido como categoria êmica nos discursos, evidencia as barreiras, até mesmo na consolidação dos mínimos inegáveis como necessidades de saúde e direito à vida.

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    » http://portalgbefc.org.br/ckfinder/userfiles/files/REBRAFC_2018.pdf

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Maio 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2022
  • Aceito
    28 Jun 2023
  • Publicado
    30 Jun 2023
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