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Variações do pensamento paradoxal na cultura latino-americana contemporânea. Apresentação do volume 26, n. 1de Alea. Estudos Neolatinos

Variations of paradoxical thinking in contemporary Latin American culture. Presentation of Volume 26, Issue 1, of Alea. Estudos Neolatinos

Para este volume de Alea, que inaugura o ano 2024, lançamos uma chamada que estimulasse o debate teórico-crítico em torno a um tema cardinal do nosso tempo, o lugar do paradoxo como forma de pensamento e de representação do mundo alternativa à razão instrumental ocidental e suas epistemologias hegemônicas. Esse eixo permitiria abrir um amplo leque de discussões vinculadas à quebra do paradigma essencialista e binário que sustenta a tradição racionalista ocidental, mostrando formas de pensamento alternativas, mais fluidas, que planteiam os problemas do ser, da existência e da comunidade a partir do paradoxo dos limites, da heterogeneidade, da dialética do estável e do devir, do mesmo e do diverso. A ideia era receber textos que recuperassem cronotopias alternativas ao modelo histórico hegeliano, apontando para outras dimensões do tempo, da história, do homem, que no caso da literatura latino-americana se reconhecem nos universos sincréticos afro-diaspóricos ou nas cosmologias ameríndias; artigos interessados em estudar subjetividades cujo funcionamento se dá fora dos modelos de unidade coerente e disciplinada do sujeito centrado ocidental; propostas que recuperassem formas de eticidade e de responsabilidade fundadas na relação direta e sem mediadores entre Eu e o Outro; variações, em fim, do pensamento paradoxal e da Relação. Esperávamos, concomitantemente, que o tema promovesse um tipo de crítica de natureza relacional, um exercício do pensamento interessado na construção de um arquipélago de ideias, às vezes paradoxais, mais do que na ratificação de um saber enraizado.

Perante essas expectativas, foi muito gratificante articular um dossiê composto de cinco textos que produzem indagações muito originais em torno à obra de Jorge Luis Borges, Roberto Bolaño, Sebastián Hacher, Samanta Schweblin e, de maneira singular, da obra do antropólogo cubano Fernando Ortiz, todos precedidos por valiosas e esclarecedoras palavras introdutórias dos editores convidados.

Já para a seção de Artigos propomos, como sempre, um possível movimento de leitura, que pode ser reconfigurado por nossos leitores de acordo com suas preferências. Um primeiro momento desse movimento, integrado por cinco textos, vincula questões teórico-literárias com estudos do romance. O primeiro artigo discute a noção de world literature, em suas diversas articulações. O conceito é visto com perspectiva diacrônica, evidenciando suas potencialidades críticas e metodológicas para o estudo do romance africano contemporâneo. O segundo artigo traz a discussão do novo realismo na literatura latino-americana e sua interface com o discurso constitucional, postulando a possibilidade de ler como ato democrático as escritas que ficcionalizam a repressão e a ausência do Estado diante da violência nas periferias urbanas. Comparar textos do realismo contemporâneo produzidos nas literaturas brasileira e haitiana e situar os contextos constitucionais que envolvem essas práticas de escrita, significa não só cobrar a bicentenária promessa constitucional descumprida, mas também constatar a força política dessa narrativa. O terceiro artigo articula o debate conceitual do realismo com problemas historiográficos da literatura espanhola, postulado que nesse sistema literário o realismo é uma “querela” inconclusa, um lugar não marcado em torno ao qual se constroem posições na biblioteca da história literária nacional. O quarto texto desse núcleo polemiza com teorias do arquivo produzidas a partir da virada arquivística das últimas décadas, especificamente com a ideia de “romance de arquivo” de Marco Codebò (2010CODEBÒ, Marco. Narrating from the archive: Novels, Records and Bureaucrats in the Modern Age. New Jersey: Fairleigh Dickinson University Press, 2010.), postulando que a causa principal para a presença do arquivo na literatura não pode ser reduzida à necessidade de conferir veracidade à narrativa romanesca ou à tentativa de endossar ou desafiar saberes dominantes, sendo preciso compreender a figuração literária do arquivo não como uma tendência do século XIX que nasce da necessidade de instituir um regime discursivo de verdade na literatura, mas, sim, como mecanismo propício à representação literária de uma sociabilidade burguesa recém-consolidada. E o quinto artigo, que fecharia esse primeiro movimento de leitura, volta à incontornável obra de Luis Costa Lima, Mímesis e Modernidade (2003LIMA , Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.) para reler sua contribuição à história da reflexão sobre a mímesis, entendida como uma relação não imitativa entre ficção literária e mundo.

Já em um segundo movimento de leitura reunimos outro núcleo de textos que transitam por temas da literatura latino-americana. Subjetividades pós-humanas, pós-utopias, tensões natureza/cultura, deslocamentos humanos em tempos de globalização e cronotopias da imaginação em movimento são tópicos reconhecíveis nos três artigos dedicados ao estudo da obra de Mónica Ojeda, Manuel Astica e Paloma Vidal, e o tema da representação da histeria, de longa tradição nos estudos feministas, reconhece-se no último artigo nesse núcleo temático, focado no romance Diva, de José de Alencar.

No terceiro ciclo temático que propomos como percurso de leitura reunimos dois textos que estudam clássicos da literatura espanhola: Pio Baroja e Lope de Vega. O primeiro analisa as formas como se configuram as políticas neocoloniais no romance Paradox, rey, de Pío Baroja, colocando em evidência a impossibilidade do autor para entender plenamente a lógica genocida do colonialismo. O segundo recria a figura das mulheres engenhosas na obra de Lope de Vega, colocando em tensão o paradoxo da mujer ingeniosa e o paradoxo histórico de Maria de Padilha, esposa do rei Pedro I de Castela, uma figura que mudaria completamente os destinos de uma corte europeia, ao converter-se de amante em rainha e influenciar o rei nas mais importantes decisões da corte.

O quarto movimento de leitura que propomos também articula dois textos e ambos transitam pelo tema das relações da literatura com outras artes. O primeiro explora a figura bíblica de João Batista, como símbolo de resistência à tirania, à violência e à irracionalidade, na canção “Pelas Tabelas”, de Chico Buarque. O texto, que desenvolve um diálogo entre os estudos culturais, teológicos e literários, mostra como na peça de Chico Buarque funcionam o poético, o profético e o patético. O segundo artigo desse núcleo temático oferece uma reflexão sobre a adaptação do filme de Disney-Pixar Coco (2017) à literatura, no intuito de mostrar a maleabilidade das narrativas na contemporaneidade, capazes de atuar no novo entorno transmedial, atualizando seus conteúdos e modificando até as próprias competências do gênero.

Na seção Tradução, incluímos a tradução ao português de uma conferência do ensaísta e poeta mexicano de origem egípcio Fabio Morábito que, inédita até hoje, mesmo na sua língua original, foi proferida em dezembro de 2022 no Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México sob o título El copista de lujo. A conferência, curiosamente, versa sobre o exercício da tradução e chega ao leitor brasileiro graças ao trabalho tradutório de Livia Grotto, a quem Alea agradece não só pela tradução, mas também pelos contatos com o escritor. Externamos nosso agradecimento a Fabio Morábito por autorizar desinteressadamente a tradução e a publicação do seu trabalho em nossas páginas.

Fechando o número, na seção de Resenhas, divulgamos a recente edição brasileira do terceiro romance do autor palestino Ghassan Kanafani (1936-1972), Umm Saad, publicado originalmente em árabe em 1969. Com a tradução ao português de Michel Sleiman, o livro foi publicado em 2023 pela Editora Tabla, do Rio de Janeiro.

Agradecemos ao amplo corpo de pareceristas que participou da avaliação do material recebido, possibilitando a seleção dos artigos que compõem este número. Em muitos casos, eles se disponibilizaram a dialogar com os autores, a fim de produzir um texto em melhores condições de publicação, sempre sob nossa mediação, acompanhando as políticas de Alea no referido à implementação das ações do Programa Ciência Aberta que registramos no Editorial do Vol. 24/1 (González, 2022GONZÁLEZ, Elena Palmero. Apresentação do v. 24, n. 1 de Alea. Estudos Neolatinos. ALEA, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 9-15, 2022., p. 9) e ampliamos no Editorial do Vol. 25/1 (González, 2023GONZÁLEZ, Elena Palmero. Apresentação do v. 25, n. 1 de Alea. Estudos Neolatinos. ALEA, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 9-13, 2023., p. 9). Nesses casos, nossa especial gratidão.

Para a preparação do Dossiê contamos com a valiosa colaboração dos Editores Convidados. Chegue à Profa. Dra. Diana Klinger e ao Prof. Dr. Wojciech Sawala nosso agradecimento, pela chamada, pela qualidade do Dossiê e por todo o trabalho desenvolvido nas diferentes etapas de organização do número.

Fazemos público também nosso agradecimento às autoras e aos autores participantes no número, professores e pesquisadores das seguintes instituições brasileiras: Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de Campinas, Universidade Presbiteriana Mackenzie, Universidade Federal de São Carlos, Universidade do Extremo Sul Catarinense e Universidade Federal de Santa Catarina; e professores e pesquisadores das seguintes instituições estrangeiras: Universidad de Buenos Aires (Argentina), Universidad Nacional de Tres de Febrero (Argentina), Instituto de Estudios Críticos en Humanidades (Argentina), Universidad de La Frontera (Chile), Universidad Católica de Temuco (Chile), Universidad Católica del Maule (Chile), Colegio San Ignacio (Chile), Universidade de Santiago de Compostela (Espanha); Adam Mickiewicz University (Polônia) e Universidade de Varsóvia (Polônia).

A nossos leitores, como sempre, desejamos uma boa e produtiva leitura.

Referências

  • CODEBÒ, Marco. Narrating from the archive: Novels, Records and Bureaucrats in the Modern Age. New Jersey: Fairleigh Dickinson University Press, 2010.
  • GONZÁLEZ, Elena Palmero. Apresentação do v. 24, n. 1 de Alea. Estudos Neolatinos. ALEA, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 9-15, 2022.
  • GONZÁLEZ, Elena Palmero. Apresentação do v. 25, n. 1 de Alea. Estudos Neolatinos. ALEA, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 9-13, 2023.
  • LIMA , Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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